A última das três Marias

Entrevistei-a o ano passado para o Público, a propósito do relançamento da obra de Maria Lamas "As Mulheres do Meu País". Então com 86 anos, a última das 3 Marias conservava no olhar a fibra da rebeldia, algo que contrastava em absoluto com a sua evidente fragilidade física. Esse desconcerto enterneceu-me, expôs de forma explícita o que ela era, o que sempre fora. Na altura estava a ser requisitada para várias coisas ao mesmo tempo. Entrevistas na televisão, noutros jornais, coisas que tinham a ver com as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Não escondia o cansaço nem a felicidade de ter de ser obrigada a andar numa roda-viva. Se nunca ninguém a impedira de fazer da sua vida o que queria, não seria a idade a dobrá-la. Falámos de feminismo, perguntei-lhe o que pensava das mulheres – tantas – que fazem questão de se declarar “femininas e não feministas”. Respondeu-me: “Sinto que há muitas mulheres que não têm consciência de tudo o que foi conquistado. Durante anos e anos andaram mulheres a lutar pelos seus direitos e sofreram muito. Foram presas, espancadas, humilhadas. Eu fui insultada e espancada na rua. Enquanto me batiam disseram-me ‘Isto é para aprenderes a não escreveres como escreves’.”  Ela e as outras duas marias (Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa) tiveram a ousadia de escrever um livro, “As Novas Cartas Portuguesas”, onde se falava das necessidades afectivas das mulheres e do seu desejo de emancipação. Lançado em 1972, foi considerado pornográfico pelo anterior regime e imediatamente apreendido. Estas recordações ainda lhe incendiavam o olhar. Era um orgulho. O seu e o das mulheres que sentia representar. Na hora da despedida, agradeço-lhe tudo o que ajudou a conquistar para mim, para a minha filha e, quem sabe, para uma futura neta. E fica a promessa: pela parte que me toca, sempre honrarei a memória das feministas do meu país.

Fev 5, 2025 - 09:15
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A última das três Marias

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Entrevistei-a o ano passado para o Público, a propósito do relançamento da obra de Maria Lamas "As Mulheres do Meu País". Então com 86 anos, a última das 3 Marias conservava no olhar a fibra da rebeldia, algo que contrastava em absoluto com a sua evidente fragilidade física. Esse desconcerto enterneceu-me, expôs de forma explícita o que ela era, o que sempre fora. Na altura estava a ser requisitada para várias coisas ao mesmo tempo. Entrevistas na televisão, noutros jornais, coisas que tinham a ver com as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Não escondia o cansaço nem a felicidade de ter de ser obrigada a andar numa roda-viva. Se nunca ninguém a impedira de fazer da sua vida o que queria, não seria a idade a dobrá-la.

Falámos de feminismo, perguntei-lhe o que pensava das mulheres – tantas – que fazem questão de se declarar “femininas e não feministas”. Respondeu-me: “Sinto que há muitas mulheres que não têm consciência de tudo o que foi conquistado. Durante anos e anos andaram mulheres a lutar pelos seus direitos e sofreram muito. Foram presas, espancadas, humilhadas. Eu fui insultada e espancada na rua. Enquanto me batiam disseram-me ‘Isto é para aprenderes a não escreveres como escreves’.”

 Ela e as outras duas marias (Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa) tiveram a ousadia de escrever um livro, “As Novas Cartas Portuguesas”, onde se falava das necessidades afectivas das mulheres e do seu desejo de emancipação. Lançado em 1972, foi considerado pornográfico pelo anterior regime e imediatamente apreendido. Estas recordações ainda lhe incendiavam o olhar. Era um orgulho. O seu e o das mulheres que sentia representar.

Na hora da despedida, agradeço-lhe tudo o que ajudou a conquistar para mim, para a minha filha e, quem sabe, para uma futura neta. E fica a promessa: pela parte que me toca, sempre honrarei a memória das feministas do meu país.