Diretor da UCAD diz que “Lei da Droga de 2023 vem legalizar o tráfico de forma encapotada”

"E o mais grave disto tudo é que o PS, na altura, mesmo contra o parecer do ICAD, contra o parecer da PJ, contra o parecer do Conselho Superior do Ministério Público, nós UCAD também fomos contra, mesmo com os técnicos, com a ciência a dizer que aquilo era mau, aprovou a lei", diz o diretor da UCAD, Nélson Carvalho.

Fev 5, 2025 - 08:20
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Diretor da UCAD diz que “Lei da Droga de 2023 vem legalizar o tráfico de forma encapotada”

O diretor da Unidade Operacional de Intervenção em Comportamentos Aditivos e Dependências (UCAD), Nélson Carvalho, considera que a lei aprovada na Assembleia Legislativa da República foi um retrocesso no combate à droga e que esta lei veio legalizar o tráfico de forma encapotada.

O responsável pela UCAD, localizada na Região Autónoma da Madeira, aborda também, em entrevista ao Económico Madeira, a importância da chegada, em 2023, à Região do Laboratório da Polícia Científica.

Nélson Carvalho pede ainda um sistema mais rápido na criminalização da droga em Portugal. O responsável da UCAD refere que demora entre 20 a 24 meses para criminalizar novas drogas e que, somente em 2024, surgiram 47 novas drogas.

O diretor da UCAD diz ainda que existe outro problema, que é a operacionalização da atualização das tabelas ligadas à identificação de drogas, em que, para determinadas substâncias (onde se incluem drogas já criminalizadas), não há distinção entre as quantidades que são consideradas para consumo e as quantidades já consideradas como tráfico.

Nélson Carvalho chama a atenção para a abertura de lojas de cannabis, que vendem canabinoides sintéticos, que, como não estão criminalizados, são considerados legais e que possuem componentes “mais potentes e perigosos”, dando como exemplo o Hexahidrocanabinol (HHC).

“São mais novas substâncias psicoativas (NSP) que estão a ser vendidas de forma legal, em lojas de porta aberta”, reforça Nélson Carvalho.

Como é que vê o panorama atual da Lei da Droga, bem como a lei que foi aprovada pela Assembleia da República, em 2023, nesta área, e o tipo de resposta que tem dado?

Em termos gerais, a Madeira melhorou a sua lei, em que foram aumentadas as multas, que podem ir até aos 90 mil euros. Antes eram muito mais baixas, do ponto de vista contraordenacional, no fundo para abranger aquelas novas drogas que não estão na lei nacional e criminal. Em relação à Lei da Droga da Assembleia da República, de 2023, ficámos desiludidos e preocupados. Porque a pretensão da Madeira era só uma: queríamos que as tabelas fossem atualizadas para distinguir o tráfico do consumo. Isso só foi feito uma vez, em 1996. E daí para cá nunca houve uma atualização.

Essa tabela é muito reduzida face às novas drogas que existem hoje em dia…

Além de estar desatualizada, não inclui essas novas drogas, e as próprias [drogas] estão mal, devido à sua concentração superior [atual]. Por exemplo, a cannabis e a própria cocaína e outras, as drogas estão muito mais potentes no seu princípio ativo. Portanto, vai ter que diminuir essas doses para distinguir o tráfico do consumo.

E isso tem de ser feito. E o mais caricato é que, em Portugal, quem deveria fazer isso até 2001 era o Conselho Superior de Medicina Legal, que foi extinto; depois seria a Medicina Legal que devia fazer essa atualização, mas mais ninguém ligou a isso. Até que nós, em 2022 e 2023, pegámos neste assunto.

O assunto foi levado à Task Force que temos na Madeira.

Eu próprio fiz contactos com a Medicina Legal. Ficaram muito surpreendidos. Não faziam ideia. O que eu acho fantástico. E perceberam o que nós queríamos, que era, no fundo, proteger os nossos consumidores destas novas substâncias.

O que é que acontece ainda hoje? Como não está naquela tabela, se eu tiver duas gramas de cocaína que já está criminalizada e já tem distinção entre tráfico e consumo, eu sou considerado um consumidor. Se tiver uma das novas drogas que já está criminalizada, mas em que não há a distinção entre tráfico e consumo, eu sou traficante.

Aqui não há uma igualdade de direitos e garantias do consumidor. E isso, para nós, era importante, além de que também dava mais instrumentos para a parte judicial e policial, porque havia uma distinção mais clara e, também, dessa forma, tudo da vertente criminal, as coisas têm de ser objetivas e claras para distinguir e ajudar as autoridades desta área a distinguir o tráfico do consumo.

Ou seja, mesmo com esta nova lei da droga, de 2023, há aqui um grande problema. Vamos imaginar um cenário em que alguém é apanhado na rua com uma, duas gramas de uma substância que não esteja nesta lista; tanto pode ser considerado consumidor como traficante, é isso?

Exatamente. E como é que se faz essa distinção entre tráfico e consumo?

Foi pretensão da Madeira, até foi a ex-deputada do PSD Madeira, Sara Madruga da Costa, que levou esse assunto à Assembleia da República para alterar a lei da droga. Queríamos fazer exatamente isso para evitar estes enganos e estas situações dúbias. A Polícia Judiciária, através do Laboratório da Polícia Científica, também juntou-se e queria também fazer essa distinção juntamente com o Instituto de Medicina Legal. Até aí tudo bem. Isso era o que nós pretendíamos.

Qual foi o problema a seguir? O PS, à última da hora, faz uma alteração que é perigosa e que não faz sentido nenhum, que é: eu, se tiver uma quantidade superior àquelas tais doses (quantidades médias para 10 dias consideradas para o meu consumo), se tiver mais, pode ser um indício que não é para o meu consumo.

Ou seja, se eu tiver 100, 200 gramas, 50 gramas de uma droga ilícita, cocaína, heroína, canábis, novas drogas, e que consiga provar que aquilo efetivamente é para meu consumo, não me acontece nada, a não ser ir para a Comissão da Dissuasão, que depois também não tem muito espaço de manobra para continuar e o processo praticamente morre ali.

Ou seja, cabe ao Ministério Público apurar se aquela quantidade não era para consumo próprio, mas sim para tráfico?

O problema aqui é: o próprio Conselho Superior do Ministério Público, que dá o parecer aquando da lei, se não existe outro elemento probatório, se não a quantidade, como é que o Ministério Público, em que outro fator [o Ministério Público] pode decidir? Em que é que a Polícia vai decidir para apreender? Porque, antigamente, já estava definido: mais daquelas gramas era considerado tráfico e ia para tribunal. Menos [quantidade] ia para a Comissão da Dissuasão. E depois, em tribunal, se fosse uma quantidade mínima, geralmente ninguém ia preso. Aliás, isso está documentado: ninguém ia preso em Portugal por consumir droga e ter em sua posse pequenas quantidades. Agora o que estamos a abrir a porta, e abriram-se a porta com esta lei, é ao tráfico.

A tal lei 2023…

Sim. A lei 55 de 2023 vem fazer uma coisa que é, no fundo, legalizar o tráfico de forma encapotada. Porque agora os traficantes sabem que se tiverem um bom advogado que consiga fazer prova de que, ao dizer que aquilo é para seu consumo, não acontece nada. E isso, para nós, é preocupante. Porque, e volto a dizer, para todas as drogas que já estão na lei 15/93, todas as drogas ilícitas estão abrangidas por esta lei. E o PS, na Assembleia da República, faz esta mudança, para mim, gravíssima, e está a pôr em risco a saúde e a segurança pública dos madeirenses e dos portugueses. E isto o que é que faz? Faz com que a probabilidade de haver mais droga na rua seja maior.

Porque, desta forma, se eu permito a um indivíduo ter estas quantidades, conseguir dizer que aquilo é para seu consumo e vai para casa e não acontece nada, isso é aumentar o regime da impunidade.

E, além disso, há outra coisa mais grave: é que as políticas de Portugal, desde 2001, têm sido sempre um exemplo para o mundo. Que é proteger o consumidor, tratar-lhe como um doente e punir o traficante.

Esta lei faz exatamente o oposto. Porque não protege o consumidor e protege, sim, o traficante. E, desta forma, estamos a estragar uma lei que tem sido um exemplo para toda a gente, para muitos países. Portugal, e o Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), recebe anualmente tantos países e serviços a explicar as boas práticas, as boas políticas. E, desta forma, não.

Esta nova lei acaba por não cortar o mal pela raiz…

Evidentemente, se houver uma quantidade maior e houver outros elementos probatórios, isso não há dúvidas. Agora, a lei veio gerar muita dificuldade tanto para as polícias quanto para as entidades judiciais e judiciárias, sem dúvida, porque criou-se uma zona cinzenta que beneficia o traficante.

E, desta forma, não estamos a proteger o cidadão. E, no meu entender, a Assembleia da República tem de ter cuidado quando faz estas leis. E o mais grave disto tudo é que o PS, na altura, mesmo contra o parecer do ICAD, contra o parecer da PJ, contra o parecer do Conselho Superior do Ministério Público, nós UCAD também fomos contra, mesmo com os técnicos, com a ciência a dizer que aquilo era mau, aprovou a lei.

Como é que isso é possível?

Eu tenho uma leitura: esta alteração da lei, para mim, foi muito feita por questões como a questão da cannabis. No fundo, isto vem tentar facilitar a legalização para fins recreativos da cannabis.

Nesta altura, existe legalização da canábis, mas para fins medicinais…

Sim, para fins medicinais, como medicamento, pode ser adquirido nas farmácias, prescrito por médico; isso somos a favor, não há dúvidas.

Agora, esta abertura, no fundo, é mais um passo para abrir as portas à indústria da cannabis para fazer a legalização recreativa, que nós também somos contra.

Aliás, neste momento, por exemplo, nos Estados Unidos, pela primeira vez, o consumo de cannabis ultrapassou o do álcool.

As pessoas têm muita a ideia de que legalizar é bom. Basta ver quais são as drogas que dão mais problemas no mundo: é o álcool e o tabaco, que são as legais. Porque, estando legais, são acessíveis, são mais baratas, e mesmo nessas continua a haver contrabando. Continua a haver contrabando de álcool, de tabaco, e estamos a pôr em risco a saúde e a segurança das pessoas. E os políticos, quando tomam decisões destas, devem ter em conta a lei. Claro que eles têm a competência política, tudo bem.

Mas, então, para que é que pedem pareceres às entidades técnicas? Se é para não terem em conta [esses pareceres], é melhor não pedir. Porque os políticos não podem simplesmente achar que são impolutos, que podem fazer o que lhes dá na gana, por questões de lobbies. Não, nós não podemos funcionar por lobbies. Nós temos que garantir a segurança das pessoas. E esta lei, no fundo, foi uma machadada na política de droga em Portugal.

Mas eu ainda tenho esperança, porque a lei foi aprovada em setembro de 2023. Em novembro de 2023, um grupo de deputados do PSD, na Assembleia da República, requereu ao Tribunal Constitucional a fiscalização sucessiva da lei, do artigo 1º e 2º, que tem a ver com as quantidades, e eu tenho esperança que o Tribunal Constitucional reverta esta situação.

Ainda em relação à lei da droga, também há ainda outra questão, que é a operacionalização da atualização das tabelas.

Como a Madeira pediu a atualização da tal portaria para distinguir as quantidades entre tráfico e consumo, e o Instituto de Medicina Legal, as Ciências Forenses e o Laboratório da Polícia Científica da Judiciária, que é o que está na lei, no artigo que foi aprovado, tinham 6 meses para fazer a atualização dessa tabela. E, até agora, nada foi feito.

E isso, para nós, era uma ferramenta importante para as entidades que estão a trabalhar na parte judicial, policial. Acho que é importante acelerarem esse processo para nos defendermos. Porque, por exemplo, há dezenas, centenas de drogas que já estão plasmadas nas quatro tabelas da lei e não sabem distinguir o tráfico do consumo.

Do ponto de vista científico, não há essa distinção. E isso gera situações dúbias que só vão beneficiar quem? O traficante. E vai prejudicar o consumidor.

Essas duas questões que eu falei, por um lado, a questão das quantidades, de não haver limite, vai aumentar a oferta da droga e, por outro lado, havendo a oferta da droga, se não está catalogado, se não está identificado qual é a quantidade para tráfico e para consumo, mais dificuldades para as entidades e mais benefícios para o traficante.

E ainda há aquela questão que já denunciou, que é a de a velocidade a que aparecem estas novas substâncias ser superior ao período de deteção dessas mesmas drogas…

Entre 2005 e 2024, atingimos as mil novas substâncias psicoativas (NSP) que já foram identificadas pela Agência Europeia da Droga.

Temos um mecanismo europeu de alerta rápido. Como é que este mecanismo funciona? Imagine que aparece pela primeira vez uma nova droga, uma nova substância.

Por exemplo, o Laboratório da Polícia Científica (LPC) identifica uma nova droga aqui em Portugal, na Madeira, nos Açores, por exemplo. Envia, notifica o ICAD, que é o organismo que representa o ponto focal nacional [na área das drogas]. Ele, por sua vez, informa a Agência Europeia da Droga e a Europol, que depois emitem um alerta para todos os países membros a dizer: “Esta substância entrou no mercado” e as pessoas começam a averiguar.

Depois, quando se vê que essa nova substância satisfaz um conjunto de critérios, como, por exemplo, intoxicações, mortes e por aí adiante, é mandado para o Conselho Europeu essa informação, que é para depois o Conselho Europeu produzir legislação e uma diretiva para criminalizar aquela droga.

E depois, a cada país, é mandada uma diretiva, e cada país proíbe essa substância na sua lei. Por exemplo, em média, Portugal tem demorado entre 20 a 24 meses para criminalizar essas drogas. Estes são processos muito morosos. Se pensarmos que, em 2024, surgiram 47 novas, em dois anos pode, num instante, aparecer mais 70, 80 novas drogas.

E daí que o mecanismo de alerta rápido devia haver uma forma de acelerar, de desburocratizar esta situação e criminalizar mais rapidamente estas drogas. Porque, senão, o que é que acontece? Os traficantes sabem, vão alterando as estruturas moleculares e é uma luta do gato e do rato em que o rato está sempre à frente. E isso é outra preocupação que nós temos tido.

Mas isto é na Europa toda, não é só aqui, porque isto é um sistema europeu.

Ainda há dias tive uma reunião em que estive com colegas de vários países. E, de facto, o problema é o mesmo.

O ideal era arranjar alguma forma legislativa para proibir todas estas drogas e arranjar exceções para os medicamentos, para a parte alimentar, os produtos precursores destas drogas são usados na alimentação, na indústria, por exemplo.

Arranjar-se uma forma de pôr tudo proibido e fazer exceções para o que era preciso.

E depois, quem quisesse, que fizesse prova de que, de fato, aquilo era medicamento ou era bom para um produto alimentar. Quem produzia é que tinha que provar que era bom.

Assim, é que poderíamos melhorar a situação. Mas, infelizmente, isto é uma situação que vai perdurar. Por isso é que nós temos feito essa parte do trabalho pela questão legislativa, pela prevenção ambiental.

Temos investido também na prevenção nas escolas, nos clubes, no trabalho, na noite.

A Madeira tem uma Task Force constituída por várias entidades, onde está representada também a UCAD, exatamente para arranjar mecanismos e estratégias de prevenção contra a droga…

A Madeira tem uma Task Force desde 2011 e todo esse trabalho tem sido feito por entidades policiais, da saúde, das casas de saúde, a Autoridade Regional de Atividades Económicas (ARAE), as polícias, o tribunal, o Ministério Público. Este é um trabalho multidisciplinar.

E tem aparecido estas alternativas, estas possíveis soluções para melhorar o problema. E tem sido graças a esta Task Force que temos conseguido produzir estas soluções para melhorar.

E a Madeira tem sido a região do país que mais tem liderado este processo a nível nacional. Tanto fomos pioneiros quando fechámos as Smart Shops e temos continuado na linha da frente e queremos continuar na linha da frente.

Há sempre estes obstáculos. Agora, o que me choca, por exemplo, é como é que a Assembleia da República, sabendo dos problemas da Madeira e dos Açores, faz uma lei destas.

Apesar do trabalho que a Madeira tem feito de combate à droga, a par dos Açores, são das regiões do país mais afetadas por esta questão…

Sim, os Açores são a primeira, depois somos nós, e o que se tem verificado também é que no território continental começa a ser cada vez mais. Porque também temos aqui um fenómeno que nos está a preocupar e que chamo a atenção das pessoas, que são aquelas lojas da cannabis, que vendem canabinoides sintéticos.

Que, mais uma vez, como não estão criminalizados, são considerados legais. E que, estou-me a lembrar de uma [substância] que é o HHC, o Hexahidrocanabinol, que tem um Tetrahidrocanabinol (THC, que é uma substância encontrada em plantas do gênero cannabis) semissintético, que é o princípio ativo da cannabis, mas muito mais potente e perigoso. E ele não está criminalizado e vende-se nessas lojas. Isso está nos rótulos desses produtos. Porque, como é legal, as pessoas acham que aquilo é inofensivo para a saúde e não é.

E é preciso ter cuidado com esses produtos.

Quais são as principais consequências?

Alucinações, delírios, agitação psicomotora, dependência, pois podem se tornar mais agressivos, podem ter estes episódios psicóticos que podem levar ao internamento. São novas substâncias psicoativas (NSP’s), são mais NSPs que estão a ser vendidas de forma legal, em lojas de porta aberta.

Pela experiência que a UCAD tem a lidar com estas questões, a adesão das pessoas tem sido grande a esse tipo de substâncias?

Não tenho informações, isso não posso dizer, mas, de qualquer maneira, preocupa.

Mas existe também esta vertente que estão a aparecer mais lojas com este tipo de ofertas ao público…

Sim, cada vez mais. Não só aqui, mas na Europa toda. Vamos a qualquer cidade europeia e estão a abrir essas lojas de uma forma impressionante.

Teme que se possa voltar aquele grande problema que a Região teve no passado com o aparecimento das Smart Shops…

Temer, temo. Mas estou convencido que, desta vez, não vai acontecer isso porque as autoridades também estão atentas e estão preocupadas e também aprendemos muita coisa. E, acima de tudo, o que eu peço às pessoas é que tenham consciência dos perigos que correm ao comprarem esses produtos.

Isto é tudo muito bonito, é tudo muito inofensivo, mas depois há provas científicas que não é nada disso.

Aliás, eu tenho esperança, por exemplo, que esse HHC seja criminalizado em breve, mas o problema é que vão surgir outros. E abriu-se uma caixa de Pandora com estas lojas.

A cannabis medicinal, ou o uso de cannabis medicinal, faz-se na farmácia. Isso é uma forma de medicamento. E tem que ser prescrito pelo médico. Não é ir a uma lojinha comprar um óleo.

Porque é que isto é permitido? Porque há um limbo na lei do uso medicinal. Há aqui uma zona dúbia que ninguém sabe se é competência do INFARMED ou se é competência da Direção Geral da Alimentação e Veterinária.

Porque há gente que diz que aquilo é um suplemento alimentar, outros dizem que aquilo está a ser usado como ansiolítico. E andamos nisto. Não havia necessidade de se criar a lei para a legalização da cannabis medicinal. Não havia necessidade porque Portugal, à semelhança da União Europeia, tem leis do medicamento. Não era necessário nada daquilo.

E isto ainda veio abrir mais uma zona dúbia para reforçar estas lojas. E isso é preocupante. Mas, mais uma vez, a Assembleia da República, neste caso, foi através da chamada esquerda liberal, aqueles movimentos liberais que acham que isto é tudo muito bom e não há problema nenhum, que depois vão enfrentando estes movimentos, que depois vão gerando consequências para a sociedade e para todos nós, como os consumos, como os internamentos e as consequências que isto tem para a sociedade.

Do seu ponto de vista, não existe uma clareza em termos legislativos relativamente a estas matérias…

E não existe porque os deputados da Assembleia da República não querem. Porque as entidades que estão no terreno deram-nos as pistas todas para eles fazerem o que era importante. Nós não queremos mandar na Assembleia da República. Longe de mim. Agora, se pedem pareceres aos técnicos, que tenham em conta [esses pareceres], porque acho que as leis também devem ser baseadas na ciência.

As pessoas também têm que ter a consciência de que as entidades que estão a fazer pareceres têm conhecimentos, e conhecimentos científicos. Agora, se os senhores deputados querem fazer leis à revelia da comunidade, querem fazer leis não sei para quê, para satisfazer lobbies, para dizer que somos modernos? É que depois há consequências. E depois a população é que paga.

E isso choca-me.

Além de que, para ter uma ideia, nós andamos desde 2012, nós não, a Assembleia da Madeira andava desde 2012, e antes já pressionávamos de outra forma, a enviar para a Assembleia da República recomendações para o governo, para a Assembleia da República, fazer alguma coisa nesta matéria. E passados 12 anos, fizeram esta machadada. Mais valia não fazerem nada. Porque, infelizmente, em Portugal, parece que só Lisboa é que conta. Se for fora de Lisboa, não conta, já não interessa.

Do seu ponto de vista, da experiência que tem tido, as pessoas também estão alertas para o problema destas novas substâncias ou não?

As camadas mais jovens têm medo, felizmente. Também fruto da informação que tem sido passada, fruto do trabalho de todos nós, na prevenção, na informação, nas notícias, tudo isso. Também usamos muito a comunicação social e agradeço também, mais uma vez, porque de facto a comunicação social é importante nesta matéria.

Tanto que a maior parte destes doentes consumidores de novas substâncias psicoativas são toxicodependentes já. Geralmente, são pessoas que em média estão acima dos 25 anos. Os internamentos na Casa de Saúde são para cima de 34, 36 anos, em média.

Mas depois o que acontece? Como estas drogas são mais baratas, os consumidores viram-se para elas. Só que os efeitos são muito superiores. E mais nefastos para a saúde, desde degeneração neurocognitiva em termos cerebrais, problemas de fígado, de coração, rins, etc. Em termos psiquiátricos, sobretudo, a maior parte dos doentes que vivem na Casa de Saúde, que são internados, têm doença psiquiátrica crónica. Têm que fazer medicação para o resto da vida do ponto de vista psiquiátrico. Depois, em termos cognitivos, há uma deterioração. E isso tudo tem um impacto. Já para não falar no impacto social nas famílias, na segurança pública, etc…

E, por isso, é que eu fico chocado como é que a Assembleia da República não tem em conta isto. Lisboa, por exemplo, e o Porto, estão a se debater com problemas ainda mais graves do que nós, ligados ao crack. Por isso, é que eu digo, acho que tem que haver uma sintonia da Assembleia da República com a comunidade.

A Madeira teve também uma novidade que foi a chegada do Laboratório da Polícia Científica (LPC), com a inauguração a se dar em julho de 2023. Como é que tem avaliado esta introdução?

O LPC tem sido um parceiro muito importante. São membros também da Task Force, a PJ, e as polícias, em geral. Aqui na Madeira temos uma relação interinstitucional.

E o laboratório, para nós, foi muito melhor porque antes a resposta era muito mais lenta porque envolvia o todo nacional. Agora, em dias, por exemplo, consegue-se saber qual é a substância. Aqui, quero destacar o trabalho do Felipe Câmara e Carlos Farinha que, no fundo, foram os grandes facilitadores e possibilitaram a vinda do LPC para a Madeira e também quero destacar a Maria João e a sua equipe, o Ricardo Cedeiro, que têm também tido um trabalho e um empenho especial nesta matéria do laboratório e têm feito trabalho notável, e João Sousa que também está a trabalhar neste momento cá na Madeira.

O laboratório tem sido uma mais-valia porque consegue identificar rapidamente quais são as substâncias. Até já aconteceu identificarem substâncias que ainda não tinham sido identificadas na Europa. Essas substâncias já foram introduzidas no sistema de alerta rápido. E o importante é fazer mais protocolos com eles. Um deles é, por exemplo, através do envio de amostras de urina no serviço de urgência do hospital dos doentes que estão sob efeito de drogas para o LPC, depois identificar quais são as substâncias.

Para quê? Para depois também, por um lado, ver quais são efetivamente os sintomas de cada substância. Até depois, se houver interesse, para desenvolver fármacos, por exemplo. Uma série de coisas ligadas à investigação na parte clínica que eu acho que são uma mais-valia e o laboratório está disposto a isso e há contatos com o Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira (SESARAM). E penso que, no futuro, haverá esse protocolo, que é uma forma de monitorizar cada vez mais o fenómeno e ajudar o doente.

Com a chegada do laboratório, a Madeira ficou com mais mecanismos para ter uma resposta mais rápida na identificação destas novas substâncias…

E também ajudar as polícias, a PSP, a GNR e a própria PJ e os tribunais, o Ministério Público e o Tribunal Judicial, a parte judicial deste processo, porque também, desta forma, têm mais ferramentas. Por exemplo, havia situações de pessoas que tinham grandes quantidades destas drogas, mas só podiam ficar 48 horas detidas.

A resposta demorava, eles saíam. Agora, é mais fácil o laboratório conseguir, provavelmente até consegue em determinadas situações, em tempo útil [identificar as substâncias] e o indivíduo já fica detido. E, desta forma, é muito melhor até no combate ao tráfico. Isso, para nós, foi uma mais-valia.

Choca-me e preocupa-me que um país democrático consinta que, ao abrigo de uma lei, se proteja um traficante em detrimento do consumidor, pondo em causa uma política exemplar a nível mundial, bem como a saúde e a segurança públicas dos consumidores e da comunidade em geral.

A UCAD, em 2023, fez ações que incluem as novas substâncias psicoativas, que atingiram 24 mil pessoas, fora as redes sociais, em que fizemos campanhas também, e acho que foi à volta de 26 a 27 mil pessoas atingidas também nas redes sociais. E para não falar nos programas, nos artigos que nós fazemos mensalmente com alguns órgãos de comunicação social e que também têm uma abrangência muito grande. Há todo um investimento do Governo Regional da Madeira na prevenção, porque achamos que é a base disto tudo, e também da prevenção do consumo das novas substâncias psicoativas.

É claro que estes resultados só vão surtir efeitos mais para frente, mas é importante proteger as nossas crianças, os jovens, os cidadãos em geral, mas sobretudo as crianças e jovens e as famílias para que tenhamos uma sociedade o mais livre possível das novas substâncias psicoativas e das outras drogas em geral e das outras dependências.