No novo pólo da Ephemera, em Arroios, há 60 mil fotografias. De bebés a casamentos, da guerra às fábricas

"Há quem prefira a qualidade, mas nós também gostamos muito da quantidade", sublinhou José Pacheco Pereira, na apresentação do novo espaço da associação Ephemera, em Arroios.

Fev 6, 2025 - 17:45
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No novo pólo da Ephemera, em Arroios, há 60 mil fotografias. De bebés a casamentos, da guerra às fábricas
No novo pólo da Ephemera, em Arroios, há 60 mil fotografias. De bebés a casamentos, da guerra às fábricas

Na mesa central há de tudo: um retrato de Zeca Afonso, "João Soares mascarado de Alberto João Jardim", momentos da vida política, fotografias de pose em casamentos ou a imagem de um grupo de amigos de visita a um vulcão no Hawai. 

"Talvez as fotografias que causam mais surpresa sejam as das pessoas comuns", reflecte José Pacheco Pereira, fundador da associação Ephemera, em conversa com a Time Out à margem da inauguração do pólo de Arroios, esta quarta-feira, 5 de Fevereiro, que marca o regresso do arquivo a Lisboa, depois de vários anos de recolha na livraria Ler Devagar, na Lx Factory. As imagens dizem como se vai movendo o mundo, para que direcções, com que verdades e farsas. Nelas "percebemos o papel das mulheres, a evolução das formas de vestir, o que é lúdico e o sério, a pompa, aspectos das relações laborais, como os sinais de hierarquia em almoços de trabalho", prossegue o dirigente do maior arquivo privado do país e possivelmente um dos maiores da Europa.

Inauguração do pólo de Arroios
DR/JFAInauguração do pólo de Arroios

É para esta sala, contida nas instalações na Junta de Freguesia de Arroios, no Mercado do Forno do Tijolo, que vem toda a colecção de fotografia do Ephemera, entre positivos, negativos, em diferentes suportes, como a película ou o vidro. "Não são menos de 60 mil", garante Pacheco Pereira, e podem ser vistas (para não falar das exposições) à quarta-feira, o "dia aberto" do espaço. Uma boa parte delas foram compradas ao peso, em sacos inteiros ou caixotes que depois de abertos revelam esferas pessoais e familiares, o dia-a-dia de uma casa de Benfica ou da Lourinhã, ou o clássico bebé nu na banheira. Vêm também para aqui os universos institucionais, documentais (como guerras, revoluções, viagens ao espaço, culturas e migrações) e "estético, chamemos-lhe assim".

Movimentos do "football"
DR/Associação EphemeraMovimentos do "football"

Ao longo de uma parede, mais de 20 módulos guardam, assim, episódios da vida política portuguesa e internacional (o arquivo conta com objectos de mais de 100 países, de Espanha ao Gana, e são cada vez mais a doações a vir do estrangeiro), da vida de rua e das tabernas, de amor e de ódio. Nem tudo é fotografia, no entanto. Para aqui também deverá vir o espólio de autocolantes e o habitual dos restantes espaços Ephemera, como cartazes, publicidade e propaganda, livros, bonecos, diários, documentação médica, recados ou roupas (Pacheco Pereira exemplifica, tirando do armário um vestido de noiva de corte acima do joelho, usado em Las Vegas). Entre pedidos de namoro e ameaças de morte, "ninguém se aborrece um minuto no arquivo", garante o historiador.

A curiosa massa da história 

Criada em 2017 (embora a recolha tenha começado muito antes), a associação cultural Ephemera gere hoje perto de 6 quilómetros de estantaria organizada, entre 400 mil e 600 mil títulos, dezenas de milhares de cartazes, perto de um milhão de panfletos, entre outros objectos mais ou menos curiosos, como as dezenas de manequins que "parecem um exército" montado no posto de Santa Iria, rebuçados da mais recente campanha presidencial da Finlândia ou miniaturas de noivos que um dia se exibiram em topos de bolos. "É por isso que quando fazemos exposições as pessoas ficam espantadas", afirma Pacheco Pereira.

Fotografia japonesa do início do século XX
DR/EphemeraFotografia japonesa do início do século XX

Uma das próximas, a inaugurar no mês de Maio em Lisboa (o espaço está por anunciar), será sobre o acto de casar. "Temos milhares de fotografias que são um retrato social muito importante." Casamentos com pompa, discretos, de pobres com pobres, pobres com ricos, católicos ou em Las Vegas, de negros... "Mas nunca nos apareceu um misto", nota o professor. São todas fotografias únicas, como mostram as costas, com datas, assinaturas e notas. A quantidade é tal que permite identificar padrões como este: "Muitas das imagens são desprovidas de afecto... Hão-de reparar que as crianças que estão à frente [nos retratos de grupo] estão todas de trombas." Quão frete pode ser uma cerimónia que começa numa missa e estaca com um fotógrafo a atrasar a brincadeira? Dores Ribeiro, voluntária (entre centenas) que se dedica à área de fotografia da associação, nota outra coisa: "Os bolos não foram sempre brancos, em andares. Isso vem da Rainha Vitória. Antes os bolos eram mais escuros." Conclusão que se tira com a observação de centenas de imagens, nunca menos. Como sublinha Pacheco Pereiro, os "ephemeros" são "firmes partidários da quantidade". "As pessoas preferem a qualidade, mas nós também gostamos da quantidade."

Guerra Colonial, Angola
DR/EphemeraGuerra Colonial, Angola

Com dois armazéns no Barreiro, outro em Santa Iria da Azóia – tão amplo que "cabe lá um Boeing... ou cabia!" – e uma série de casas na vila da Marmeleira, onde vive Pacheco Pereira e onde tudo começou, é decisivo para a saúde do arquivo, por um lado, estar em Lisboa e, por outro, continuar a crescer. "Temos um problema de dispersão. A nossa maior despesa é com transportes", explica o dirigente associativo, lembrando que há pontos de recolha da Ephemera por todo o país, desde Viana do Castelo, passando por Lamego, Porto ou Figueira da Foz.

"A principal importância de estar aqui tem a ver com as recolhas e entregas." Muito do material hoje no arquivo tem origem em doações feitas em Lisboa, havendo também muitos episódios de caixas e recheios encontrados na rua. "Várias coisas deitadas ao lixo são salvas por nós. O nosso primeiro objectivo é esse: salvar."

Almoço de Natal dos "ephemeros", 2024
Rui SerranoAlmoço de Natal dos "ephemeros", 2024

A solução de Arroios surgiu no seguimento da exposição "10 dias que abalaram Portugal", durante as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, no ano passado. E o namoro deu em casamento ou num "compromisso com a cultura, o conhecimento e a memória", nas palavras da presidente da Junta, Madalena Natividade, para quem a escolha da freguesia "não foi por acaso". "É uma freguesia vibrante e com um património único", descreveu a autarca na inauguração do espaço, que considera "mais um passo para tornar o Mercado do Forno do Tijolo um ponto de encontro" (também está programada para o mercado a abertura, ainda este semestre, de um espaço da rede Um Teatro em Cada Bairro).

Apesar dos novos metros quadrados prontos a arquivar e mostrar a vida nas suas diferentes dimensões, o que existe não chega. Todos os dias se encontram coisas e todos os dias o arquivo cresce. Neste momento, precisariam do dobro do espaço e de mais voluntários, "sempre mais", garante José Pacheco Pereira. São eles que retiram os agrafos aos documentos, que limpam os objectos, que digitalizam as fotografias, que organizam os itens no espaço e que recebem os visitantes. "Acreditamos que, aconteça o que acontecer, salvo a peste, a fome e a guerra, o que cá entra está mais seguro do que o que fica em casa, que o interesse ou a falta dele, os recursos ou a falta deles, a morte, os divórcios, as mudanças de casa, os despejos, o fim das bibliotecas pessoais ou familiares, ou os dias de destruição colectiva como as segundas-feiras depois das eleições, ajudam a eliminar muitas coisas que queremos salvar", lê-se num texto de apresentação da Ephemera. Um arquivo e um modelo social.  

Mercado do Forno do Tijolo (Intendente). Qua 10.00-16.30 (horário sujeito a alterações no futuro). Entrada livre