O impacto das deportações na vida de brasileiros e das famílias

Na contramão da onda sustentada há décadas por histórias de sucesso, região de Valadares assiste a refluxo migratório, sob pressão do governo Trump

Fev 7, 2025 - 16:29
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O impacto das deportações na vida de brasileiros e das famílias

Um voo com brasileiros deportados dos Estados Unidos chega ao Brasil nesta sexta-feira (7/2). A aeronave sairá da cidade de Alexandria, na Luisiana, e pousará em Fortaleza (CE). Em seguida, um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) voará para o Aeroporto Internacional Belo Horizonte, em Confins, com outros emigrantes repatriados. Diante da intensificação dos decretos de deportação de Donald Trump, mineiros do Vale do Rio Doce, região conhecida pelo alto fluxo migratório ao país norte-americano, lutam para reunir suas famílias interamericanas no rastro das autoridades, enquanto os que retornam ao Brasil tentam reconstruir suas vidas.

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“A melhor coisa que fiz foi ter ido para a América”, afirmou o mineiro João*, de 37 anos, deportado no ano passado, deixando dois filhos menores de idade sob a tutela da ex-esposa, todos indocumentados. Natural de São José de Safira, no Vale do Rio Doce, ele vive atualmente em Governador Valadares, a cidade mais conhecida pelo alto fluxo migratório rumo aos Estados Unidos. João se mobiliza para trazer os filhos de volta antes que a imigração encontre a família e os separe. Com as passagens compradas, a luta agora é contra o tempo.

“A mãe deles foi até à Corte tentar se legalizar porque casou com um ‘americano’, mas deram uma carta de deportação para ela, que tem 60 dias para voltar ao Brasil. Se correr esse prazo, vão encontrá-los no endereço fixo”, explicou. Os recursos para comprar as passagens foram enviados às crianças, de 14 e 12 anos, que serão embarcadas sozinhas em voo para o Brasil em até 20 dias.

Assim como boa parte dos brasileiros que vão para a terra do Tio Sam, João* foi buscar melhores condições financeiras, com os dois filhos e a companheira, pela fronteira do México. “Atravessamos uma favela em Tijuana com estupradores e ladrões. Só que o ‘coiote’ conhecia o lugar, então não fomos atacados. Do outro lado, em San Diego, os policiais nos esperavam.” Apesar da preocupação com a família, ele concorda com as políticas anti-imigrantes de Donald Trump. “Ele quer deportar mesmo, mas eu entendo. Imagina se o Brasil ficasse cheio de venezuelanos, por exemplo? Nós (imigrantes) não pagamos impostos”, disse.

O chamado “cai-cai” é uma das formas que os imigrantes brasileiros encontraram para passar pela fronteira do México e chegar aos Estados Unidos utilizando o próprio sistema norte-americano. A prática é investigada pela Polícia Federal no Brasil e consiste em famílias inteiras, às vezes constituídas ficticiamente, se entregarem com o propósito de evitar ou dificultar o processo de deportação imediato. O grupo fica detido por certo tempo nos EUA e depois é libertado no território norte-americano com prazo para retorno, mas seus integrantes não voltam para o país de origem.

O imigrante foi parado pela polícia norte-americana dirigindo em alta velocidade e não compareceu ao julgamento do processo. Encontrado pelas autoridades, foi preso por 45 dias e enviado de volta ao Brasil. “Voltei no mesmo avião da Global X em que os últimos deportados vieram, também fiquei com as mãos e os pés algemados, três horas parado na Luisiana. Só um passageiro foi maltratado, mas porque desafiou as autoridades”, contou.

João quitou a dívida de R$ 125 mil adquirida com a entrada ilegal no país e hoje trabalha como autônomo em Governador Valadares, aguardando pelo abraço dos filhos. “Quem ganhou seu troco, ganhou. Quem não fez dinheiro, pode vir embora”, afirmou. O ex-imigrante ainda relatou que, além dos deportados, vários amigos imigrantes estão saindo voluntariamente dos Estados Unidos.

Em Itambacuri, a 130 quilômetros de Governador Valadares, José* luta para reconstruir a vida após ter sido deportado na última “leva” de emigrantes que chegou a Confins em 25 de janeiro. O casal só pôde voltar para casa no fim da tarde daquele domingo, após quase 20 horas de espera na rodoviária de Belo Horizonte. “Viemos algemados. Estava muito quente”, relatou.

Com a mulher, ele passou três anos e meio sem visto para viver nos Estados Unidos. O casal deixou para trás uma empresa, casa e um carro. Ao Estado de Minas, o repatriado contou que está hospedado na casa de uma irmã. “Fomos a um compromisso na Corte e ficamos presos. Só conseguimos avisar a família quando chegamos ao Brasil”, revelou.

 

Os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre a emigração dos valadarenses aos EUA são do Censo de 2010. A cidade figurava como a mais representativa no cenário brasileiro e mais de 8 mil valadarenses teriam se mudado para o país naquele ano. O número representa 3% do total da população, que somava mais de 260 mil habitantes. Ainda há a subnotificação causada pelo esquema de imigração ilegal que a Polícia Federal de “cai-cai”.

O governo brasileiro não informa dados de emigrantes por cidade, apenas por estado, por meio do Sistema de Tráfego Internacional (STI). Atualmente, o STI registra informações de entrada e saída de pessoas do país, com todos os tipos de vistos possíveis, portanto não há diferenciação entre quem chega ou sai a trabalho ou para turismo. O painel é mantido pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra).

O início do interesse da população valadarense pelo “sonho americano” data da década de 1960, quando engenheiros norte-americanos chegaram à cidade para ampliar a estrada de ferro Vitória-Minas, com destino à capital capixaba. Os “figurões” chegaram com carros importados e construíram casas de madeira no estilo norte-americano, o que despertou o desejo da população jovem, que estava diante de um cenário de enfraquecimento econômico no comércio e pecuária.

Quando o grupo deixou a cidade, um dos engenheiros resolveu permanecer com a família e abriu uma escola de inglês com intercâmbios para os EUA. À época, 17 jovens abastados fizeram a viagem e voltaram maravilhados com as oportunidades no país. Todos ficaram sabendo, e o desejo de emigrar cresceu ainda mais. “Quem tinha condições tirava o visto de trabalho e pagava mil dólares. Quem não tinha, tirava o visto de estudante e ficava lá sem permissão para trabalhar. Com as proibições, começaram a ir pela fronteira”, explicou Sueli Siqueira, doutora em ciências humanas pela Universidade do Vale do Rio Doce.

Siqueira ainda detalhou que os grupos foram formando redes de apoio para outros imigrantes da região. “Eles não são ‘pobres coitados’. Quando emigram, vão para a casa de um tio, de uma prima, um pai. Tem que ter esse capital cultural de conhecer pessoas lá, e o dinheiro para ir pela fronteira também. No primeiro grupo que foi para lá, a pessoa que menos abrigou pessoas recebeu 23 em casa, buscou no aeroporto e ajudou a arrumar emprego. E assim eles formaram uma rede”, contou.

A pesquisadora acredita que as medidas de Trump podem conter o fluxo migratório por um tempo, mas não cessarão as viagens indocumentadas de imigrantes. “Sempre existiu deportação, (Barack) Obama foi um dos que mais deportou. O problema é que agora a nova gestão está criminalizando os imigrantes, e eles não são criminosos, eles têm passaporte e documentação, só não possuem o visto de trabalho. Agora isso vai conter as imigrações, mas eles vão achar outro jeito de ir, como sempre acharam”, apostou Siqueira.

A Prefeitura de Governador Valadares, em caráter de urgência, determinou a instalação do Serviço de Apoio ao Valadarense em Situação de Deportação. Os repatriados e seus familiares receberão acolhimento dos órgãos de serviço social e saúde municipais, além de acesso a um banco de empregos.

Em nota, o Executivo municipal falou sobre a alta expectativa de aumento populacional. “A medida acontece diante da expectativa de uma demanda crescente de famílias e indivíduos que devem retornar a Governador Valadares. A cidade de quase 260 mil habitantes, segundo o censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), está localizada no leste de Minas Gerais, e ficou famosa pelos altos números de pessoas que migraram para os EUA desde a década de 1960 em busca do sonho de uma vida melhor”, disse.

(*Nomes fictícios) 

 

Deportados dos EUA -  Passam pela sala de embarque do aeroporto de Manaus: Brasil condenou o "desrespeito aos direitos fundamentais" dos migrantes ilegais brasileiros e alterou a rota dos novos voos

Deportados dos EUA - Passam pela sala de embarque do aeroporto de Manaus: Brasil condenou o "desrespeito aos direitos fundamentais" dos migrantes ilegais brasileiros e alterou a rota dos novos voos

MICHAEL DANTAS/AFP - 24/1/25

Depois de negociações, um novo trajeto para o voo de brasileiros deportados dos Estados Unidos foi definido. O traslado previsto para hoje (7/2) terá Fortaleza como destino. Para finalizar a viagem, uma outra aeronave, em caráter excepcional, será disponibilizada pela Força Aérea Brasileira (FAB) com destino ao Aeroporto Internacional de Belo Horizonte, em Confins. A nova dinâmica foi definida a partir da polêmica envolvendo o primeiro voo de deportados após Donald Trump assumir o segundo mandato. O voo foi realizado em meio a denúncias de falhas no avião, maus-tratos e uso de algemas.

Com o novo trajeto, o governo brasileiro espera reduzir o tempo total de viagem e garantir suporte imediato aos cidadãos que retornam ao país em condições de vulnerabilidade. O embarque dos brasileiros começará em Alexandria, no estado de Luisiana (EUA), e terá uma escala técnica em Porto Rico.

A operação de embarque dos repatriados, ainda de madrugada, seria acompanhada pelo diplomata do Consulado-Geral do Brasil, em Houston. A previsão é que a aeronave chegue a Fortaleza à tarde. Tanto na capital do Ceará quanto na capital mineira o governo federal vai montar um esquema de recepção e apoio.

Segundo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda na Luisiana o Itamaraty e a Polícia Federal vão ter todos os dados dos passageiros. "Aí, nós vamos ver quantas pessoas tem, de que estado são, para a gente poder cuidar quando o voo chegar aqui", disse Lula em entrevista à imprensa.

Nos dois aeroportos, a PF fará uma operação especial com objetivo de realizar procedimentos migratórios e de segurança aeroportuária. Para atender as pessoas que chegarem ao aeroporto de Fortaleza, a equipe do Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante (PAAHM) estará mobilizada. O serviço também terá o apoio de uma equipe do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. O posto avançado é um serviço oferecido pela Secretaria dos Direitos Humanos do Ceará (SEDIH) com um atendimento multidisciplinar.

Já no aeroporto de Confins, o Posto de Acolhimento aos Repatriados, criado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania vai garantir que os repatriados tenham acesso à internet gratuitamente, carregador de celular e canais para que possam entrar em contato com os familiares, além de fornecer orientações sobre serviços públicos de saúde, assistência social e trabalho.

Negociações

Durante esta semana, um grupo de trabalho se reuniu para buscar uma solução na chegada dos brasileiros deportados. A equipe é formada por representantes do Itamaraty, do Ministério da Justiça e Segurança Pública e da Polícia Federal, pelo lado brasileiro, e por representantes da Embaixada dos EUA em Brasília e do Serviço de Imigração e Controle de Aduanas dos EUA (ICE, em sua sigla em inglês), pelo lado norte-americano.

O novo destino corresponde a cerca de cinco horas a menos de voo em comparação a Confins. O uso de algemas é praxe do governo norte-americano para traslado dos deportados. Com o novo trajeto, a expectativa é evitar que os brasileiros estejam algemados enquanto sobrevoam o território brasileiro. O voo desta sexta-feira será acompanhado em tempo real pelo grupo e também será objeto de avaliação visando à organização dos voos seguintes.

Correntes e algemas

Este será o segundo grupo de imigrantes brasileiros que retorna ao país desde o início da segunda gestão de Trump à frente da Casa Branca. O número de passageiros nessa aeronave não foi divulgado. Ainda deve ser resolvido também se essa mudança será definitiva. No primeiro voo de deportação de imigrantes, em 24 de janeiro, 88 brasileiros chegaram ao país acorrentados e algemados.

O voo tinha como destino o Aeroporto Internacional de Belo Horizonte, em Confins, mas a aeronave fretada pelo governo estadunidense apresentou problemas técnicos, o que fez a viagem terminar em Manaus, no Amazonas. No dia seguinte, uma aeronave da FAB transportou os brasileiros até o destino oficial. O traslado foi alvo de críticas do governo brasileiro que não concordou com o tratamento dado aos brasileiros durante o voo.

O voo fazia parte de acordo assinado, em 2018, entre o presidente brasileiro na época, Michel Temer, e o então ocupante da Casa Branca, Joe Biden. O acordo bilateral prevê a realização de voos de repatriação de imigrantes ilegais que não tinham mais possibilidade de recursos junto ao governo dos Estados Unidos.


*Estagiária sob a supervisão do subeditor Humberto Santos