O mundo é um lugar horrível

Aos 91 minutos, decorridos três quartos de A garota da agulha, Dagmar Overbye (Trine Dyrholm) diz a Karoline (Vic Carmen Sonne): “O mundo é um lugar horrível. Mas precisamos acreditar que não é. Entende?” “Não”, responde com um sussurro a jovem operária desempregada, servindo nesse momento de ama de leite. Esse trecho do confronto entre as duas, em Copenhague, que dura apenas vinte segundos, é suficiente para fazer o espectador concordar que o mundo é mesmo um lugar horrível – a delicatéssen de Overbye serve de fachada, em 1919, para sua atividade clandestina de encaminhar crianças para adoção, quando, na verdade, elas são mortas, conforme a própria Karoline testemunha acontecer com um bebê cujo corpo, em seguida, é jogado na água corrente do fundo de um bueiro. Além do assassinato de recém-nascidos, A garota da agulha inclui, entre outros horrores, discriminação de classe social, deformação física causada pela Grande Guerra, pobreza e desamparo extremos. Mesmo assim, dada a excelência incomum de sua feitura, o filme é refinado e fascinante. The post O mundo é um lugar horrível first appeared on revista piauí.

Fev 5, 2025 - 13:07
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O mundo é um lugar horrível

Aos 91 minutos, decorridos três quartos de A garota da agulha, Dagmar Overbye (Trine Dyrholm) diz a Karoline (Vic Carmen Sonne): “O mundo é um lugar horrível. Mas precisamos acreditar que não é. Entende?” “Não”, responde com um sussurro a jovem operária desempregada, servindo nesse momento de ama de leite. Esse trecho do confronto entre as duas, em Copenhague, que dura apenas vinte segundos, é suficiente para fazer o espectador concordar que o mundo é mesmo um lugar horrível – a delicatéssen de Overbye serve de fachada, em 1919, para sua atividade clandestina de encaminhar crianças para adoção, quando, na verdade, elas são mortas, conforme a própria Karoline testemunha acontecer com um bebê cujo corpo, em seguida, é jogado na água corrente do fundo de um bueiro.

Além do assassinato de recém-nascidos, A garota da agulha inclui, entre outros horrores, discriminação de classe social, deformação física causada pela Grande Guerra, pobreza e desamparo extremos. Mesmo assim, dada a excelência incomum de sua feitura, o filme é refinado e fascinante.

Um dos principais méritos da direção de Magnus von Horn, assim como do roteiro que ele escreveu em parceria com Line Langebek, é justamente equilibrar atrocidades do passado que se mantêm atuais com uma encenação cinematográfica primorosa. Nascido na Suécia e radicado na Polônia, von Horn é graduado na famosa Escola Nacional de Cinema de Lódz, que é uma das principais locações de A garota da agulha, seu terceiro longa metragem, pontuado com cenas lúgubres e um final ameno.

 
Trine Dyrholm no papel da Dagmar Overbye (Crédito: Divulgação)

 

Em entrevista à revista do site Deadline, von Horn declarou que para ele

esse filme é como uma ficção científica. Você sabe, usamos a viagem no tempo para refletir sobre nosso mundo atual. E penso que quanto mais semelhanças você encontrar com a sua própria sociedade, pior ela será. E se você não encontrar nenhuma, então melhor para você. Um lado meu sempre quis fazer um filme de terror. Quando ouvi falar do caso [de Dagmar Overbye] fiquei assustado. A ideia tocou no medo que tenho – eu era um pai muito novo na época – tipo ‘e se algo acontecer com meus filhos?’ Na minha experiência, você pode estar deitado à noite e imaginar coisas horríveis e isso é um buraco escuro. Você não pode fazer nada a respeito desse medo, mas descobri que posso pelo menos usá-lo de forma criativa. Já fiz isso antes, usando o medo como uma espécie de combustível e isso sempre funcionou bem para mim, porque muitas vezes surge disso algo muito pessoal

O impacto de A garota da agulha provém, em certa medida, de estar enraizado em uma ocorrência histórica reencenada com esmero – Overbye foi presa e condenada à morte em 1921, pelo assassinato de nove bebês. Ela era suspeita de ter matado até 26 crianças, em Copenhague, entre 1913 e 1920. Para von Horn e Langebek, porém, não se tratava apenas de contar a história da serial killer. Daí Overbye só aparecer decorrido cerca de um quarto do filme, na emblemática sequência do banho público em que conhece Karoline, verdadeiro foco da narrativa, pois é através do olhar dela – a garota da agulha – que os horrores do mundo nos são revelados.

 

Em entrevista à newsletter Seventh Row, von Horn comentou algumas de suas opções formais:

Quando estava escrevendo ou preparando o filme, sempre ouvia música eletrônica. Nunca quis que a trilha sonora fosse da época, mas que tivesse um baixo eletrônico. Vejo agora que isso torna o filme mais moderno e mais conectado com o mundo de hoje. 

A fotografia em preto e branco é uma forma de fazermos uma viagem no tempo confiável para o público, usando imagens inspiradas em iconografia, filmes e fotografias daquela época. No filme, quando os trabalhadores saem da fábrica, recriamos a cena do um filme famoso dos irmãos Lumière [A Saída da Fábrica Lumière em Lyon, 1895]. É um modo de fazer o público viajar no tempo e acreditar naquele mundo. Mesmo que não conheçam esse filme específico, inconscientemente, acredito que o sintam. Sempre quis construir miniaturas para usar em um filme. Construímos trinta ou quarenta miniaturas de edifícios e filmamos. Nós os digitalizamos e os adicionamos digitalmente ao filme com efeitos visuais. Era uma forma meio analógica de trabalhar.

 

Após estrear em competição na mostra oficial do Festival de Cannes, em 2024, A garota da agulha participou de diversos festivais mundo afora, inclusive o Festival do Rio, recebeu vários prêmios e concorre com outras quatro produções, inclusive Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, ao Oscar de Melhor Longa-Metragem Internacional, a ser entregue em 2 de março. Concorrem também, nessa categoria, Emilia Pérez, de Jacques Audiard, Flow, de Gints Zilbalodis e A semente do fruto sagrado, de Mohammad Rasoulof.

Desde 24 de janeiro, A garota da agulha está disponível na plataforma de streaming Mubi. Terá lançamento em cinemas no Brasil?

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Outro filme que contrapõe horror e beleza, alternando ambos, é Trilha sonora para um golpe de Estado, documentário de 2h30m, dirigido por Johan Grimonprez, que recebeu o Prêmio Especial do Júri de Inovação Cinematográfica em Documentário Internacional no Festival de Sundance de 2024. Estreou, este ano, em 30 de janeiro no circuito brasileiro de cinemas e concorre ao Oscar de Melhor Documentário de Longa-Metragem.

Patrice Lumumba, em cena de Trilha sonora para um golpe de Estado (Crédito: Divulgação)

 

Neste caso, a beleza é a das imagens de arquivo da luta pela independência do Congo, no início da década de 1960, além do jazz da trilha musical por conta de grandes intérpretes. O horror, por sua vez, resulta, além do papel dúbio da Organização das Nações Unidas (ONU), do complô, deposição, sequestro e assassinato de Patrice Lumumba, e das milhares de vítimas, além das demais atrocidades cometidas por mercenários enviados na tentativa de preservar o poder colonial.

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